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Chargeback: esta conta não é sua

Todo o exercício de livre iniciativa envolve risco. Ainda pode existir algum empreendedor desinformado que acredite que sua atividade diz respeito apenas a si mesmo, mas a grande maioria já aprendeu, alguns da pior forma, que é só colocar uma placa “vendo produto” ou “presto serviço” que as responsabilidades já se iniciam. Logo virão as implicações junto aos consumidores, contratantes em geral (fornecedores, B2B etc.), trabalhadores, Fisco, entidades sindicais, entidades fiscalizadoras (PROCON, Ministério Público), entre outros que eventualmente possam aparecer. O “pulo do gato” no ato de empreender é justamente verificar se o benefício que a empresa proporciona aos seus participantes justifica o risco assumido.

Contudo, por mais estranho que pareça, empresas de alguns setores parecem acreditar que o risco de seu negócio pode ser repassado a terceiros sem justa retribuição. As credenciadoras de cartão de crédito estão entre elas.

Quando falamos de Chargeback, que consiste basicamente no não reconhecimento, pelo titular, de uma ou mais compras realizadas por meio de seu cartão de crédito, estamos diante de um grande exemplo de repasse, a nosso ver indevido, do risco do negócio. A sistemática comum encontrada nos contratos de prestação de serviços firmados entre os lojistas e as credenciadoras é esta: se o titular do cartão contestar a compra, por qualquer motivo, o lojista assumirá o prejuízo. Será que essa conta de fato é do lojista?

Podemos iniciar a análise resgatando a ideia da boa-fé. Segundo o artigo 422 do Código Civil, os contratantes precisam agir com boa-fé antes e durante a contratação, o que equivale dizer que uma parte deve estar sempre bem-intencionada em relação à outra, nunca com o objetivo de prejudicá-la ou de levar vantagem indevida sobre ela.

Nesse ponto, poderia se argumentar: ora, se o Chargeback está previsto em contrato e se o lojista manifestou sua vontade de contratar, onde está a ausência de boa-fé por parte das credenciadoras?

Como vimos, a boa-fé não é necessária apenas na conclusão do contrato, mas também antes dele, o que poderia incluir, sem dificuldades, o próprio modelo de negócio que está sendo explorado. É bastante óbvio que as credenciadoras de cartão fazem-se valer de seu porte econômico e da dependência criada no mercado para criar um modelo de negócio voltado apenas para as suas próprias necessidades, bem como estabelecendo regras no mínimo desequilibradas junto aos seus contratantes, utilizando-se, para tanto, de contratos de adesão, ou seja, de contratos que não permitem negociação, mas que devem ser aceitos integralmente pela parte contrária.

No meio jurídico, passou-se a utilizar a denominação de “cláusula leonina” para toda disposição contratual que lesa o direito da outra parte ou a boa-fé. A origem da expressão é oriunda de uma fábula de Esopo, na qual um cavalo, uma cabra e uma ovelha haviam feito um acordo com um leão e caçaram um cervo. Partindo-o em quatro partes, e querendo cada um levar a sua, disse o leão: “a primeira parte é minha, pois é meu direito como leão; a segunda me pertence porque sou mais forte que vós; a terceira também levo porque trabalhei mais que todos; e quem tocar a quarta me terá como inimigo”, de modo que tomou todo o cervo para si. Invertendo-se os valores, atribuir a outrem todo o prejuízo de uma empreitada no mínimo conjunta, como é o caso de uma venda online com pagamento por cartão de crédito, guarda clara relação com a ação do leão da fábula.

Alguns fatos relevantes precisam ser destacados: a) segundo dados colhidos pela E-bit, aproximadamente 54% das transações no comércio eletrônico no ano de 2014 foram realizadas por meio de cartões de crédito, o que significa dizer que o setor é dependente dessa forma de pagamento; b) as credenciadoras e operadoras de cartão de crédito formataram seu modelo de negócios com menos elementos de segurança do que outros setores bastante similares. Parece razoável que, para ter acesso ao extrato de um cartão de crédito, o portador precise de uma senha e, às vezes, até de um tolken ou cadastro prévio do dispositivo utilizado, mas para realizar uma compra eletrônica seja necessário, segundo o padrão do mercado, apenas digitar dados que se encontram impressos no próprio cartão físico? Em outras palavras, é certamente desproporcional o nível de segurança oferecido na compra de um produto pela Internet em relação a ações igualmente importantes, mas que se encontram muito melhor guardadas; c) o lojista não possui qualquer ingerência quanto ao ato de pagamento com cartão de crédito. Ele apenas providencia que as informações exigidas pela credenciadora/operadora sejam atendidas; d) o serviço prestado pelas credenciadoras/operadoras é muito bem remunerado, baseado geralmente em retenção de percentual sobre o valor da contratação realizada, o que diminui para praticamente zero o risco de não recebimento da sua contraprestação.

Ainda sobre a questão da segurança nas transações realizadas com cartão de crédito, motivo recorrente do não reconhecimento da compra, pouco movimento se vê no sentido de aprimorá-la, até porque é contra a lógica financeira investir em recursos para evitar problemas cujo prejuízo maior é sempre de outrem (lojistas), não do investidor.

O cenário desenhado acima deixa claro que as credenciadoras/operadoras de cartão de crédito estão “nadando de braçadas” em seu nicho de negócio, mas não parecem estar guardando a boa-fé objetiva que é exigida de todo e qualquer contratante. Não é de se entranhar que ações judiciais já começaram a chegar aos tribunais brasileiros com vistas a invalidar a cláusula de Chargeback, e argumentos jurídicos não faltariam nesse sentido.

Mas o que poderia ser feito para apressar a mudança de cenário? Pressão política nunca é demais, bem como a atuação das organizações de classe que poderiam, em grau maior de igualdade, pleitear administrativa ou judicialmente junto às credenciadoras/operadoras melhores condições comerciais.
 

Dr. Márcio Cots

Sócio do COTS Advogados, escritório especializado em Cyberlaw (Direito dos Negócios Digitais) com sede em São Paulo e, sócio do escritório norte-americano CyberLawStudio PLLC com sede em Nova Iorque. Professor universitário de Direito nos MBAs da FIAP e atua como Professor Convidado nos MBAs da FIA/USP. Mestre em Direito pela FADISP, especialista em CyberLaw pela HARVARD LAW SCHOOL - EUA, com extensão universitária em Direito da Tecnologia da Informação, pela FGV-EPGE. Membro do Harvard Faculty Club. Membro da comissão de crimes eletrônicos e de alta tecnologia da OAB/SP e consultor jurídico da ABCOMM.
      Autor de diversos artigos sobre o tema Direito Digital e coautor do livro Marco Civil Regulatório da Internet – Editora Atlas – 2014. Foi assessor jurídico de órgãos de representação na discussão do Marco Civil regulatório da Internet no Brasil e vem assessorando estas entidades nas discussões do Anteprojeto da Lei de Proteção de Dados Privados. É consultor jurídico do SEBRAE Nacional, para propositura de políticas públicas relacionadas ao comércio eletrônico e inovação (startups), tendo assessorado empresas no Brasil, EUA, França, Chipre e Angola. Foi Diretor Jurídico e de Compliance de empresas de tecnologia por mais de 10 anos.

Dr. Ricardo Oliveira

Sócio do do COTS Advogados, escritório especializado em Cyberlaw (Direito dos Negócios Digitais), Tecnologia da Informação e E-commerce.Possui Extensão universitária em Direito da Tecnologia da Informação pela FGV-EPGE, MBA em Gestão Estratégicas de Negócios pela faculdade de informática e Administração paulista - FIAP e especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Mackenzie. Também é co-autor do livro Marco Civil Regulatório da Internet - Editora Atlas - 2014.

Atua há quase 10 anos na área jurídica, focando na multdisciplinaridade e interação dos mais diferentes ramos do Direito, sempre com foco em empresas do comécio eletrônico e tecnologia da informação.

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